Interessante provocação levantada pelo jornal O Globo, em 29/9/2010. Temos um processo de desconstrução de conceitos importantes e da própria teoria da Agenda Setting. O primeiro teexto é de Arnaldo Bloch.
Jornais, TVs, redes sociais, estado, Deus, urnas corporações: de quem é, hoje, a voz do povo?"Nós não precisamos de formadores de opinião. Nós somos a Opinião Pública" – disse o presidente Lula, dias atrás, num arroubo contra a imprensa, em meio ao último escândalo pré-eleitoral. "Nós quem, cara pálida?", opinou, na rede, no ar e no papel, uma parcela da sociedade. Dias depois, Lula já estava de novo exaltando a liberdade de expressão como coisa mais importante do mundo, numa dinâmica que vem se repetindo.
O fato é que o presidente tocou num tema relevante: se ela existe, em que se transformou a Opinião Pública numa era em que os jornais e as TVs, como fontes de informação relevante, se cruzam, no mesmo espaço, com o entretenimento, as redes sociais, instituições, corporações e vozes independentes de blogs, sites e indivíduos online? Que papel tem a educação do público nesta equação? Nas colunas de papel que se seguem, cinco nomes de primeira ordem no jornalismo e no pensamento das comunicações dão as suas opiniões e divergem sobre o assunto. Aos leitores, a escolha de ler e formar (ou não) a sua.
Discutível, como deve ser
A opinião pública é de um duplo sentido: quer no momento de sua formação, uma vez que não é privada e nasce do debate público, quer no seu objeto, a coisa pública. Como "opinião", é sempre discutível, muda com o tempo e permite a discordância: na verdade, ela expressa mais juízos de valor do que juízos de fato, próprios da ciência e dos entendidos.(...) A opinião pública não coincide com a verdade, precisamente por ser opinião. (Dicionário de Política, Norberto Bobbio)
O problema é de quem escreve
Alberto Dines
Nada mudou, a opinião pública não é uma entidade distinta, esotérica, antropomórfica, cheia de caprichos. Opinião pública é a sociedade que se manifesta. O conjunto que se comunica. Isto vale para todos os tempos, desde o momento em que o homem aprendeu a conviver – alguns querem saber mais e, sentindo que sabem mais, abrem-se à compulsão de se manifestar. São os tais formadores de opinião: comadres, fofoqueiros, falastrões, escribas, párias, imortais ou que nome tenham. Todos são formadores de opinião, os propriamente ditos e os por eles formados, o processo é contínuo, em duas mãos e inúmeras camadas.
A sociedade digital, "conectada", manteve a mesma estrutura básica. As chamadas "redes sociais" não fazem grande diferença porque dentro delas existem os mesmos núcleos e funciona o mesmo sistema. Alguns fazem-se ouvir mais, por diferentes razões, geralmente porque o que dizem, naquele momento, soa verdadeiro. Nosso problema hoje é outro: neste Fla-Flu eleitorial só se presta atenção aos títulos, ninguém quer saber de texto, contexto, hipertexto. Problema de quem escreve.
O espaço público foi para o espaço
Muniz Sodré
Há uma corrente de sociólogos que diz que a Opinião Pública não existe. Seria um objeto que depende de um corpo fechado de avaliadores. Jornalistas, especialistas, líderes de opinião, empresários. É, de fato, um discurso de enunciados presumidamente coerentes, homogêneos, "de consenso", extraídos da voz do espaço público.
Isso é algo ilusório. O espaço público existiu, sim, com força, nos séculos 18 e 19 em vários países da Europa e até no Brasil, onde o movimento abolicionista contou com o apoio de uma imprensa que talvez tenha sido a mais livre, com gente da categoria de Rui Barbosa e José do Patrocínio. Formadores, ou "Instrutores públicos", como diria Nietzsche.
O que foi acontecendo? Esse espaço foi se culturalizando, atravessado pelo entretenimento e pela cultura de massa. Ampliou-se, sem dúvida, mas perdeu a força política.
Porém, com o advento os meios digitais, redes sociais, a ideia do espaço público foi de vez para "o espaço" e ganhou uma reinterpretação privada.
Às vezes tem eficácia consensual, como nos casos da mobilização por Obama, da Ficha Limpa, ou o pessoal que se opõe em Davos. Mas na prática do dia a dia isso tem menos a ver com Opinião Pública.
É possível, mesmo, que as televisões e os jornais não tenham influência sobre esse espaço da rede. As pessoas que frequentam esta praça estão mais interessadas na blitz da lei seca, no passeio de bicicleta, do que em política.
Das praças gregas ao tribalismo
Antonio Rogério da Silva
A ideia de "opinião pública" é típica das sociedades modernas, onde a formação de grupos de interesses e a possibilidade de divulgação de suas posições se tornaram viáveis graças à existência dos meios de comunicação.
Entre os antigos helenos, que não possuíam outro meio além de fala e escrita em tabuinhas de cera, o espaço da "opinião pública" se restringia à "ágora" – praça principal das antigas cidades gregas – e às assembléias para votação de uma lei ou a determinação de uma pena jurídica. Poucos tinham direito a participar. Só os cidadãos masculinos livres podiam expressar sua opinião. A formação de grupos capazes de influenciar a maioria – sofistas, filósofos, famílias influentes etc. – levou algum tempo para ocorrer e, quando se deu, o regime da cidade autônoma (polis) já estava em decadência.
Nesse sentido, o fenômeno da opinião pública é uma característica dos estados modernos.
Por ser "opinião" (doxa) e não um conhecimento (episteme) consolidado, e "pública" ao invés de privada, seu conteúdo está sujeito a mudanças que acontecem com anúncio de novas informações relevantes e, devido à mobilidade social, com a momentânea filiação de um indivíduo a um grupo. Em casa, cada um pode ter uma posição que seja diferente da que tem no trabalho, no clube ou entre amigos.
Ao longo do tempo, a democratização dos meios de comunicação – sobretudo depois da Internet – permitiu que novas instituições e associações tivessem a sua opinião divulgada a um número maior de pessoas. Nas democracias, as livre expressão desses grupos permite também um esclarecimento rápido das falsas proposições, o que proporciona um enriquecimento do debate, em geral.
Entretanto, quando partidos políticos que alcançam o poder tentam impor suas opiniões como sendo a de todo uma população, com base em proclamados índices de popularidade, então a democracia corre riscos históricos de se transformar em demagogia, possibilitando o domínio dos "aduladores do povo" – como dizia Aristóteles – que tentam fazer valer seus interesses mesquinhos como se fossem de todos.
Textos reproduzidos no Observatório da Imprensa.